Transição Socialista

Por que alguém votaria em Boulos se há Ciro?

Este texto não é campanha para Guilherme Boulos ou Ciro Gomes. Nós já temos candidato: a companheira Vera Lúcia, do PSTU. O intuito deste texto é fazer uma comparação entre os programas de Ciro e Boulos, para melhor expressar por que consideramos a candidatura de Boulos nefasta para a esquerda. Usaremos principalmente as declarações dadas por eles nos programas Roda Vida de que participaram (mas também, ora ou outra, declarações dadas a outros meios). Os Roda-Vivas de Boulos e Ciro podem ser acessados aqui e aqui, respectivamente.

1. Quanto à forma de aplicação das principais políticas de governo

Boulos e Ciro são contra as reformas trabalhista e da previdência. Ambos falam que revogariam a primeira e inviabilizariam a segunda. Logo no início de sua entrevista ao Roda Viva, Boulos afirma: “A nossa primeira medida, no dia primeiro de janeiro de 2019, vai ser propor um plebiscito para que o povo brasileiro possa decidir se quer manter ou revogar as medidas tomadas pelo Michel Temer”. Ciro Gomes não fica atrás. Para ele, no Roda Viva, é preciso “enfrentar as minorias poderosas em nome das maiorias desorganizadas”, trabalhando “diretamente com a decisão popular por meio de plebiscitos e referendos”.

2. Quanto à política fiscal

Tanto Boulos quanto Ciro criticam a Emenda Constitucional 95 de Temer, que congela os gastos do governo por 20 anos. Para Boulos, trata-se de uma “medida draconiana sem paralelo em nenhum lugar do mundo”. Ciro usa a mesma frase: “isso não tem precedente em nenhum lugar do mundo”.

Ambos são a favor de um aumento da tributação para os mais ricos, para supostamente aliviar a situação “dos trabalhadores e da classe média” (afirmado assim, igualmente, pelos dois). A medida é o chamado “imposto progressivo”. Segundo Boulos, para resolver o desigual sistema tributário brasileiro, “a medida mais efetiva é a tributação de lucros e dividendos no país”. A política de Ciro é a mesma. Diz ele: “o absurdo é que só dois países do mundo, o Brasil e a Estônia, não cobram imposto sobre lucros e dividendos!”.

Ciro dá o exemplo dos Estados Unidos, o qual, diz ele, “ninguém duvida que seja uma pátria capitalista”. Lá, segundo Ciro, o imposto sobre a herança é de 29% da alíquota média. Boulos no Roda Vida esqueceu-se desse exemplo. Mas em entrevista à Band afirmou que seu exemplo eram “os Estados unidos, que é um país liberal”, “onde há 40% de taxação sobre renda”.

3. Quanto à taxa de juros

Para Boulos e Ciro, o “capital financeiro” — termo pelo qual se referem ao inexistente capital que apenas produziria juros — é o grande mal. O empresário “produtor” não seria o problema. Por isso Boulos afirma que “não estou aqui para demonizar empresário”, pois este “cria emprego”.

Para Boulos e para Ciro, seria fundamental quebrar a concentração bancária, o “cartel dos bancos”, que cria juros exorbitantes. Para isso, segundo Boulos, seria preciso “usar os bancos públicos como ferramenta (…) a Caixa e o Banco do Brasil (…) têm condições de aplicar taxas de juros menores no mercado e com isso forçar os outros brancos privados a aplicarem [taxas mais baixas]”. A própria concorrência entre bancos resolveria o problema. Seria preciso portanto, diz Boulos, “governar com bancos que tenham taxas civilizadas de juros e tratem o povo de maneira decente”. Trata-se exatamente da mesma medida defendida por Ciro, como comenta no Roda Viva o jornalista Ibsen Manso (e como declarou Ciro diversas vezes para grandes jornais).

4. Quanto ao pagamento da dívida pública

Também quanto a isso ambos têm a mesma posição: reformar a dívida pública. No Roda Viva, Boulos não fala sobre o que fará com a dívida pública, mas em outra entrevista, no “Encontro com Prefeitos e Prefeitas de todo o Brasil”, afirma que “o problema maior do Brasil francamente não é a dívida pública”. O problema seria a existência de uma proporção ruim entre dívida e PIB. A grande preocupação, portanto, seria a de melhorar as condições (estabelecer condições mais “leves”, favoráveis ao povo) para se pagar a dívida. Ciro, no Roda Vida, curiosamente, lançou a mesma frase que Boulos: “O problema do Brasil não é o tamanho da dívida”. Para o cearense, o problema seria apenas “o criminoso prazo [de pagamento] que está se impondo ao Brasil”.

5. Quanto ao governo Dilma e a polêmica do “golpe”

Ambos defendem o primeiro governo Dilma e criticam o segundo. “Temos que avaliar a política da Dilma até 2015, e depois de 2015”, diz Boulos. O primeiro mandato, segundo Boulos, teria tido vários méritos, apesar do erro da política de desonerações às grandes empresas. Esse erro teria forçado Dilma a trazer o economista do Bradesco Joaquim Levy à condução da pasta econômica em 2015. Já para Ciro, o problema é que em 2015 “a Dilma mentiu, não contou a verdade para o povo brasileiro da crise econômica” e “saiu com essas maluquices, com Levy, fazendo as loucuras que fez (…) todas essas mazelas do Brasil começaram ali, com Levy”.

Apesar de criticar o indefensável segundo mandato de Dilma, ambos avaliam que o governo de Temer é “golpista”.

6. Quanto ao que fazer com o MDB

Para Boulos e Ciro, não daria mais para governar com o MDB, com seu fisiologismo dando as cartas no Brasil. Seria preciso e possível superar a achacação que impede um bom funcionamento do Estado. Boulos diz que “pela primeira vez na Nova República vai colocar o PMDB na oposição”. A frase seria forte, se não fosse a mesmíssima de Ciro de todos os dias desde dezembro de 2017, quando tornou pública sua candidatura. Para o Roda Viva, entretanto, ciente de que essa frase já estava mais do que gasta, Ciro inventou outra, mais forte: “vou destruir o MDB pelo caminho da democracia”. Para ele, bastaria “fechar a torneira da corrupção” e o MDB desapareceria…

7. Quanto ao direito ao aborto e às “drogas”

Quanto ao aborto, Boulos afirma no Roda Viva que “o direito das mulheres decidirem sobre seu próprio corpo” tem de ser tratado “como um tema de saúde pública no Brasil, sem tabus, dialogando com a sociedade”. Ciro também afirmou ser a favor da descriminalização do aborto: “não vejo sentido em colocar o peso do Estado sobre essa tragédia [humana]”. Mas, assim como Boulos, revelou grande preocupação em “dialogar com a sociedade”. Por isso, diz ele: “nenhum tema será tabu”. As frases são praticamente as mesmas de Boulos. Ambos pensam assim: o presidente pode ter posição pessoal, mas sua função pública seria abrir o debate nacional; seria ser neutro.

Também quando à legalização das drogas a posição parece ser a mesma, sobretudo para acabar com o “genocídio e encarceramento da juventude pobre e negra”, a que mais paga (e com a vida) pela repressão estatal ao comércio de drogas (a começar por pequenas quantidades). Caberia encontrar formas de liberar o consumo de pequenas quantidades para usuários e dependentes.

Afinal, por que os programas de Boulos e Ciro são iguais?

Boulos e Ciro ostentam um programa igual, de traço pequeno-burguês. O pequeno-burguês, em política, é aquele que vive com seus milhares de numerozinhos — e Boulos e Ciro são os reis das cifras —, pensando em onde cortar uma coisinha para melhorar outra. Essa é a mediocridade de quem capta as mazelas do capitalismo, mas propõe medidas utópicas de pequenas melhorias, na prática irrealizáveis sob a ordem capitalista no médio e longo prazos. No fundo, o pequeno-burguês acha que está além das classes sociais, que é tão inteligente e ardiloso que, com sua retórica, seus numerozinhos, suas bravatas, ameaças à convocação popular, conseguirá assustar e enganar ao mesmo tempo a classe trabalhadora e a burguesia.

O programa pequeno-burguês foi criticado por Karl Marx desde 1847, em seus escritos contra o socialista francês J.-P. Proudhon. Este, esclarece Marx, queria sempre encontrar um “meio termo”, um equilíbrio; via-se acima das classes. Proudhon tinha ideias mirabolantes para diminuir as mazelas do capitalismo. Ele, segundo Marx, queria as condições burguesas sem as consequências que decorrem necessariamente dessas condições. Marx e Engels submeteram esse ponto de vista a uma crítica impiedosa. Marx e Engels (em 1872, em prefácio ao Manifesto Comunista) criticam a defesa dos “impostos progressivos”, afirmando que não é possível conceber um Estado neutro, capaz de ser usado para uma classe ou outra. Marx (em janeiro de 1865, na famosa carta a Schweitzer) ridiculariza a proposta proudhoniana de “Bancos Públicos” que dariam “crédito gratuito”, bem como revela que é estúpida a ideia de Proudhon de que o capital que porta juros é o grande mal e a forma principal do capital. Revela Marx inclusive, nessa carta, que o pequeno-burguês, em sua admiração pelo forte Estado burguês, acaba sempre capitulando a pequenos autoritários. Eis por que, revela Marx, Proudhon virou apologista do ditador-populista Luis Bonaparte, que usava a miséria para manter a ordem do capital. Não à toa, Boulos e Ciro vivem endeusando Lula.

Em grande medida, é possível afirmar que o marxismo surgiu como corrente própria no movimento internacional da classe trabalhadora exatamente na negação e delimitação em relação a esse tipo de política pequeno-burguesa. Foi um esforço de depuração, para fazer a classe trabalhadora encontrar uma política propriamente revolucionária (comunista). Eis por que é possível afirmar que esse tipo de política pequeno-burguesa, de Proudhon, é lógica e historicamente anterior ao marxismo. Essa política, portanto, não é apenas anti-marxista, mas pré-marxista, anacrônica.

Dizer isso significa afirmar que essa política não corresponde mais ao nosso tempo histórico. Se era possível e compreensível alguém defender honestamente uma política assim em meados do século XIX — e ela foi defendida por muitos outros que Marx e Engels criticaram —, hoje tal política é impossível materialmente, historicamente, e é pura charlatanice. Não se trata de se afastar de Marx porque este supostamente estaria ultrapassado. Os pequeno-burgueses voltam-se à utopia infantil pré-marxista. Trata-se de afastar-se de Marx por pura covardia política. A defesa de tais propostas hoje é simplesmente uma farsa para esconder o verdadeiro interesse de Ciro e Boulos: candidatarem-se a bons mantenedores da ordem social capitalista para o capital. Com a queda do PT, o capital precisa de novos enganadores das massas.

Poder-se-ia dizer que uma diferença significativa entre os dois esteja no fato de que Boulos é forçado a falar de socialismo — dado que isso está no nome do PSOL. Mas ele se sai bem dessa desagradável obrigação, afirmando que “socialismo é igualdade de oportunidades”. É difícil de conceber insulto maior ao marxismo.

Na verdade, a diferença principal consiste no seguinte: Ciro a rigor não é um pequeno-burguês. Ele já foi “provado”, “testado” há muito tempo; já governou uma das maiores cidades do país (Fortaleza), um importante estado (Ceará), bem como foi ministro de governos desde Itamar até Lula. Já é propriamente um político burguês, um bom gestor capitalista. Aliás, é um político burguês hábil e dos mais perigosos para a classe trabalhadora (com seus ares de populista-autoritário, que maquiavelicamente quer “ser temido” para governar, como afirmou no Roda Viva). Assim, Ciro é já a realização do que Boulos pretende ser.

Mas isso é apenas uma maldade da história, um problema de cronologia de gerações. Eis por que, talvez, a mais significante diferença entre Ciro e Boulos resida no fato de que o primeiro é apoiado eleitoralmente por Caetano Veloso e o segundo por Paula Lavigne…