Transição Socialista

Como explicar a prisão de Cunha?

Parte da esquerda está perplexa. Atônita. Nem mesmo está comemorando a prisão de Cunha. Afinal, Cunha não era o grande inimigo do PT, o partido visado pela Lava-Jato? Como é possível que Moro esteja prendendo aquele que (para os petistas) seria um grande aliado seu? Cunha seria aquele que, segundo os petistas, ficaria sempre solto, provando que a Lava-Jato era um golpe reacionário (apoiado pelos EUA) para derrubar o PT. Com a prisão de Cunha, fracassa mais uma vez a tese petista, superficial, do “golpe”.

Essas análises estão erradas porque partem da ideia de que o PT é o bem e o Cunha é o mal. Essas análises são superficiais porque acham que Cunha era inimigo do PT. Ora, além do PT tentar um acordo com Cunha até os 45 minutos do segundo tempo — e Cunha só aceitou o impeachment porque viu que não poderia mais ser salvo —, mesmo após isso ele foi considerado um aliado em potencial. Lula, pouco após Cunha receber a denúncia do impeachment, havia falado a Dilma, em ligação particular, que o problema do país era que havia um “presidente da Câmara [Cunha] totalmente acovardado”, um “presidente do Congresso [Renan] totalmente acovardado” e “um Supremo [STF] totalmente acovardado”. O problema do país, para Lula e Dilma, problema que levava ao aumento da pressão contra o PT, era que esses figurões e cortes supremas — aliados seus — estavam “acovardados”, pressionados pela população, sendo levados a agir contra o PT.

Na verdade, o conto de que Cunha era um grande inimigo do PT foi criado pelo próprio PT para enganar sua base, sempre pré-disposta a ser enganada. Interessava ao PT criar um bode-expiatório para tentar desviar o foco do descontentamento geral contra Dilma, canalizando-o em Cunha. É por isso que contra o “Fora Dilma” a base petista sempre gritava “Fora Cunha” (o que a direção adorava, mas não ousava fazer).

Na verdade, Cunha não só era um grande aliado até a última hora do PT, como era uma das melhores expressões do petismo. O PT se realizou historicamente em décadas para se expressar plenamente numa figura como Cunha. Cunha era a alma-gêmea, sem caráter, inescrupulosa, de Lula. Sua essência, assim como a de Lula, era e é o roubo do Estado e dos recursos da população trabalhadora. Esse esquema de roubo é tradicional na política brasileira, mas atingiu patamares inauditos sob o governo do PT, graças ao boom da economia brasileira, determinado por condições externas. Esse esquema petista diluiu a política numa gelatina amorfa do mais puro fisiologismo. Dentro desse pântano fisiológico, do estrume, nasceu a flor, Cunha, o príncipe dos larápios. Mas, na verdade, hoje fica claro, Cunha era apenas uma sombra do rei, Lula.

Como explicar a Lava-Jato? A Lava-Jato é produto de um setor da burguesia que percebeu que perdeu totalmente as rédeas do país nos anos de fisiologismo mais baixo e barato construído pelo PT. Parte da burguesia se tornou refém da estrutura de poder petista, econômica e política, que em certo sentido se autonomizou. Esse é o fenômeno tradicional em política chamado de bonapartismo. A estrutura de poder político-econômico criada pelo PT se tornou tão poderosa que quase tirou do conjunto da classe burguesa as rédeas sobre a condução do Estado brasileiro (favorecendo apenas um setor da burguesia, o mais rico, de bancos, agronegócio e construtoras). Parte menor da classe burguesa se viu num grande risco, refém desse esquema cego, caminhando para a aventura, confusão e barbárie, para os gastos fiscais “irresponsáveis” (para a burguesia), para a bancarrota do Estado. Se seguisse nesse caminho cego, o conjunto da classe burguesa pagaria, ao final, muito caro pela farra lulista.

Foi por isso que a Lava-Jato se iniciou (assim como, antes, muitas operações da PF, que não tiveram grande fôlego). Era um mecanismo de defesa do Estado democrático burguês, que é o regime político do conjunto dos setores burgueses. Acontece que desta vez, no caso do petrolão, as denúncias se cruzaram com uma conjuntura particular, de descontentamento popular crescente, iniciada após 2013, graças à crise econômica. Desta vez, os casos de corrupção, até então banalizados entre a população, ganharam novamente corpo entre o descontentamento popular, como não ocorria desde 2005, com o mensalão. Misturou-se uma necessidade de um setor burguês minoritário com a revolta das massas populares. Esse descontentamento popular insuflou a operação e realizou, na prática, uma aliança entre um setor minoritário da burguesia nacional com camadas populares, aliança que rachou o consenso político do grande capital criado em torno do PT, que durante anos esbanjou um esmagador controle sobre a política nacional e sobre o congresso.

Em parte, a operação até saiu do controle da grande burguesia e da “classe política“, que já muitas vezes reclamou dos “excessos” da Lava-Jato. Em parte também, a própria onda de descontentamento popular teve guarida dentro de algumas instituições do Estado, relativamente autônomas (dentro de uma democracia burguesa), instituições formadas em grande parte por proletários, ainda que melhor remunerados. São todos esses elementos, conjuntos, que explicam a continuidade da Lava-Jato e, hoje, a prisão de Cunha. Assim, a Lava-Jato não é expressão de um “golpe” do grande-capital, com apoio dos EUA, contra a presidenta “legítima” do Brasil, mas possivelmente a expressão, na prática, de uma aliança entre um setor menor da burguesia com amplas camadas populares, descontentes com a crise econômica.

Para a população trabalhadora e jovem, a prisão de Cunha e a possível futura prisão de Lula são bons elementos, assim como foi a queda de Dilma. Primeiro, porque é uma forma de se expressar a revolta contra esses burgueses vendidos. Segundo porque, graças à pressão das massas, a repressão não cai só nas costas da classe trabalhadora, como tende a ocorrer sempre no país da impunidade. Terceiro porque desmonta o projeto de poder petista (do qual Cunha era mero coadjuvante), que de fato caminhava a ordem econômica e social brasileira para o desastre, produzindo desemprego e rebaixamento de salários. E quarto, mas não menos importante, porque enterrando Cunha enterra-se junto todo o nefasto projeto petista, que tantos males e confusões criou para a esquerda brasileira, destruindo uma ou duas gerações de lutadores.

Enquanto os petistas temem a prisão de Cunha, “coxinhas” saem às ruas para comemorar, de verde e amarelo, provando serem menos seletivos com os burgueses do que os petistas. A prisão de Cunha, ainda que preventiva, só revela que a prisão de Lula se aproxima. Que seja realizada!