Transição Socialista

“Deflação”, economia vulgar e panela de pressão

Neste início de mês, comentaristas e economistas vinculados à grande mídia da burguesia deram expediente com um discurso estranho, que geralmente não lhes é afim: comemoraram o que chamaram de um crescimento do “poder de compra” do salário do trabalhador brasileiro. Isso porque o país registrou em junho uma deflação de 0,23% nos preços das mercadorias, segundo dados do IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), preparados pelo IBGE.

Para esses economistas, trata-se de um processo pontual, que não deve se repetir nos próximos meses, vinculado sobretudo aos seguintes fatores: 1) uma inesperada safra favorável no meio da ano — a chamada “safrinha” virou uma “safrona” —, o que permitiu a grande produção de alimentos, e, consequentemente, seu barateamento; 2) a maior incidência de chuvas, que permitiu melhores condições para a produção energética e consequente diminuição do preço controlado (administrado) dessa mercadoria, impactando nos gastos com habitação.

De fato, alguns fatores dos índices dos alimentos, habitação e transporte, vinculados a processos naturais, impactaram sobre a formação dos preços. Mas a análise começa a ficar estranha quando esses economistas destacam ainda outro elemento, não natural: a crise econômica, ou seja, a diminuição do poder de compra da classe trabalhadora, que, sem dinheiro ou mais cautelosa, saiu da esfera do mercado, levando à ampliação das ofertas por parte do comércio.

Para esses sujeitos, a esfera da circulação — oferta e procura — é uma das maiores responsáveis pela oscilação dos preços das mercadorias. Tanto é, que o remédio para qualquer tipo de oscilação dos preços consistiria no uso de ferramentas de política monetária do Banco Central — sobretudo a partir da taxa básica de juros, a selic, diretamente controlada pelo Copom de Ilan Goldfajn. Assim, para esses senhores economistas e comentadores, a queda da inflação, além do elemento natural e do subconsumo das massas, teria ainda um terceiro vetor: seria resultado das políticas tomadas pelo Banco Central nos últimos meses de diminuição da taxa básica de juros.

De fato, a selic diminuiu de 14,25% em outubro de 2016 para 10,25 neste mês (e espera-se que estacione em cerca de 8,5% nos próximos meses) — todavia, conforme informaram esses mesmos senhores economistas e comentadores da grande mídia, o crédito para consumo pessoal, estranhamente, contrariando tudo, ficou mais caro exatamente desde que o Copom iniciou a corte na selic, invertendo a tendência esperada.

Como se vê, se apenas seguirmos esses senhores economistas e comentadores não conseguiremos explicar nada. Primeiro, porque comemoram a deflação e um suposto aumento no poder de compra da classe trabalhadora ao mesmo tempo em que explicam esse fenômeno como derivado da diminuição do poder de compra da classe trabalhadora. Segundo, porque, de acordo com eles, a queda na inflação é produto da ação do Banco Central, mas, informam, os grandes bancos resolveram começar a aumentar o preço do crédito pessoal exatamente no mesmo momento em que o Copom resolveu baixar a selic.

Para esses comentadores e economistas, inclusive, é como se os bancos estivessem “dando um tiro no pé” ou “sendo oportunistas demais”, perdendo uma chance única de pensar a longo prazo na recuperação da economia. Eis que, após tanta irracionalidade, salta aos olhos o caráter pequeno-burguês ou ideológico desses senhores: eles acreditam na possibilidade de que, sob o capitalismo, algum banqueiro possa pensar antes na riqueza e desenvolvimento da nação, e não na riqueza e desenvolvimento de seu próprio banco. Mas o caráter absurdo salta ainda mais aos olhos quando se nota que o próprio herói deles, Ilan Goldfajn, é banqueiro, executivo e sócio do Itaú-Unibanco, um dos maiores bancos nacionais. Alguém acredita mesmo que um sujeito desses, à frente do principal órgão de política monetária da nação, tomaria medidas que afetariam o seu próprio banco? Muito pelo contrário.

Na verdade, mais do que haver uma determinação dos preços pela ação consciente do Banco Central, ocorre uma determinação da ação consciente do Banco Central pelos preços. É o movimento geral dos preços, totalmente dependente da equalização mundial vinculada ao processo produtivo, à criação de valor, que determina o maior ou menor grau oportunista/aventureiro do Banco Central sob a gestão do sr. Goldfajn. Aliás, os juros no Brasil, mesmo com a diminuição da selic, continuam escandalosos, sendo dos maiores do mundo (competindo com os da Rússia), favorecendo de forma criminosa os capitalistas rentistas do país. A queda da selic dá-se apenas para que não haja um total comprometimento da dívida pública, ou seja, para que o Estado brasileiro não se torne insolvente diante dos bancos. A “respeitável” condução do BACEN pelo Sr. Goldfajn consiste apenas em saber determinar a percentagem de juros que o Estado será capaz de pagar para os bancos (ou seja, para ele mesmo, proprietário de banco) sem se tornar inadimplente. Por isso o desespero desses senhores — entre eles, outro banqueiro, Henrique Meirelles — diante da “necessidade” de se aprovar a reforma da previdência. Preferem tirar do trabalhador e não da selic, obviamente.

Enfim, o fato é que a oscilação dos preços no Brasil — a tendência de “desinflação” — deve ser avaliada de acordo com uma tendência mundial vinculada ao processo de produção, e não à mera oscilação decorrente da circulação de mercadorias. Isso é o determinante. Na verdade, observamos uma tendência geral de queda da inflação no Brasil desde meados de 2016, determinada por uma igual tendência no resto do mundo, que deve se manter ao menos até o estouro da nova crise econômica. O Japão, como se sabe, lutou contra um processo deflacionário durante anos, e hoje ostenta baixa inflação. A deflação manifesta-se também na União Europeia e aparece como tendência nos EUA. Essa tendência, de um ponto de vista global, pode ser determinada ou por uma diminuição geral no valor unitário das mercadorias (M) ou por um aumento no valor do dinheiro-ouro (D). O segundo elemento não ocorre hoje, portanto, a tendência é determinada por um processo geral de aumento na produtividade do trabalho (grau de exploração da classe trabalhadora) nas economias de ponta do planeta, produtividade que se manifesta como diminuição geral no valor unitário das mercadorias. Ou seja, cada vez mais um número maior de mercadorias é lançado no mercado por um dado capital.

O grau de extração crescente de mais-valia (absoluta e relativa) nas economias de ponta, além de revelar o futuro de miséria capitalista das populações desses países — e a situação da classe trabalhadora nos EUA ou os protestos na Europa comprovam-no —, revela que as populações de países como o Brasil e outros terão de pagar em dobro pela farra capitalista. O aumento da taxa média de exploração nos países de maior riqueza acumulada impacta necessariamente na taxa de exploração dos menos ricos. É uma linha média geral que se impõe, cedo ou tarde. Por isso, para os capitalistas, o “custo Brasil” não é válido hoje — o “país” não é “rentável”. Eles necessitam antes de tudo de uma modificação radical nas relações entre trabalho e capital (a favor do capital, claro). Para isso está aí a reforma trabalhista, que corre o risco de ser aprovada no começo desta semana no Senado e ir para a temerária sanção presidencial. Ela deve realizar, via enorme crescimento da rotatividade nos empregos, um rápido achatamento salarial (contratações com salários mais baixos, pressionadas pelo altíssimo desemprego, que, aliás, chega a quase 30% entre jovens em algumas capitais).

Desse ponto de vista, é curioso notar que os economistas da mídia burguesa tenham deixado escapar pequenas comemorações com a “deflação” de junho, observando o aumento pontual no poder de compra da classe trabalhadora. Devem ter recebido puxões de orelha de seus editores-chefes. De fato, tanto os últimos dados da inflação quanto essa deflação pontual revelam, momentaneamente, uma manutenção relativa no nível dos salários de importantes categorias de trabalhadores no Brasil, bem como uma pequena recuperação no salário diante do custo da cesta básica. Ou, ao menos, uma perda não tão acentuada neste último período. Tudo muito pontual, em meio a um cenário catastrófico, é claro. Mas o interessante é notar que isso só se deu porque a burguesia brasileira, como um todo, ainda não conseguiu realizar um rebaixamento médio dos níveis de vida da classe trabalhadora conforme gostaria. Ela está atrasada com as reformas. As taxas médias de exploração global impõem aos capitalistas aqui instalados a necessidade imanente de redução de “custos” (achatamento dos salários), mas a representação política da burguesia esteve muito desagregada, com tendência crescente de enfraquecimento, tornando-se pouco capaz de realizar todos os ataques de que gostaria.

As reformas — trabalhista, previdenciária, sobretudo — são defendidas como necessidades da “nação” (da burguesia, na verdade) desde o início do segundo mandato de Dilma, em 2014. Temer só repetiu o mantra dilmista, e o próximo presidente (Rodrigo Maia, o “Botafogo” das planilhas da Odebrecht) já faz oferendas para o mesmo deus-capital. Todavia, há quatro anos — ou seja, desde junho de 2013 —, a ação independente dos setores proletários brasileiros registrou que não é mais possível suportar uma piora nas condições de vida da ampla maioria da população. Essas ações de profundo impacto produziram confusão e desagregação política na burguesia, que não conseguiu ainda realizar todos os seus ataques, fazendo com que a tendência de achatamento salarial seja momentaneamente mitigada, gerando uma pequena e particular resiliência salarial diante do valor dos preços. Eis a forma — contida numa pequena nota sobre deflação — como a luta de classes aparece deformada em nosso país.

A oscilação dos preços deve ser pensada de acordo com a teoria do valor-trabalho. Após isso, entram na determinação, pontualmente, elementos naturais, concorrenciais, oferta e procura, e mesmo políticos. Estes últimos, particularmente neste momento, tiveram relevância diante da confusão da classe burguesa. É essa mesma burguesia, já bastante enfraquecida, que tentará fazer passar, nesta semana, no Senado, a reforma trabalhista. Ela não tem outra opção, pois do contrário abdicaria da luta de classes (por mais deformado que seja o parlamento como expressão da luta de classes). Todavia, caminhando assim, a burguesia avança de olhos vendados para a explosão social. Na verdade, junho de 2013, que abriu uma tendência ascendente de revolta do proletariado brasileiro, foi apenas um apito de alarme. É o apito da panela de pressão. O grau de exploração está muito elevado e uma piora geral nas condições de vida da população trabalhadora levará a uma revolta social fora do controle no médio e longo prazos.

Em suma: os dados da economia explicam por que a burguesia necessita aumentar a pressão… E explicam também que a panela já está fervendo e necessariamente explodirá.