Transição Socialista

Entrevista: a situação dos entregadores de aplicativo na Argentina

No dia primeiro de julho, entregadores de diversas cidades do Brasil paralisaram para enfrentar as condições de trabalho precárias impostas pelas empresas de aplicativo. Esse movimento não é isolado: trabalhadores ao redor do mundo vêm se organizando para lutar contra a exploração, e já haviam puxado paralisações em outros países, como México, Chile, Costa Rica.

Como parte do esforço de apoio da mobilização, a TS entrevistou Maxi, entregador argentino organizado na FIT. Ainda que mantenhamos certa diferença com esses companheiros, mormente a respeito da forma de reivindicação salarial e defesa do emprego[1], aproveitamos a nova paralisação do último dia 25 para divulgar o texto da entrevista, pois o avanço da luta é de interesse de todos nós trabalhadores.

 A SITUAÇÃO DOS ENTRGADORES DE APLICATIVO NA ARGENTINA

Eu comecei a trabalhar no Glovo [aplicativo de entregas] aproximadamente há dois anos e meio, já tendo outro trabalho, como reação à crise econômica que estamos passando na Argentina e em todo o mundo, como produto da crise econômica que existe e que hoje está sendo aprofundada por conta da pandemia e um salário não dava conta de cobrir os gastos que eu tenho. Tenho dois filhos e tenho que pagar o aluguel de uma casa, não tenho casa própria, preciso lidar[2] com os custos que sobem graças a uma inflação acumulada em 100% – estou falando desses dois últimos anos, e a estimativa é baixa, a inflação superou amplamente essa cifra.

Nesse sentido, começar a trabalhar me deu, a princípio, algum tipo de fôlego na crise econômica e creio que é isso que enfrentam os trabalhadores na argentina hoje em dia, entendendo que as paritárias, para os trabalhadores que estão sindicalizados ou são assalariados, no geral, não cobrem a inflação.

A princípio, e passando os meses, fui me dando conta do nível de precarização que nós, trabalhadores de entrega, estamos sofrendo, e isso é algo que se repete em todos os países onde estas empresas estão presentes: nós entregadores sofremos uma extrema precarização das condições de trabalho, elas pagam muito pouco e muito abaixo do que é necessário para a sobrevivência… ver e sentir na própria pele o sofrimento que é juntar algum dinheiro que sirva, estar exposto a jornadas de trabalho por vezes de 12h, 14h, que é o que faz um trabalhador que trabalha full-time nos aplicativos.

E isso sem ter nenhuma espécie de direito, quando nós trabalhamos e ficamos doentes são dias que não recebemos, o mesmo acontece com os acidentes, as empresas não contratam o que aqui chamamos de seguradoras de risco de trabalho…

Tampouco temos férias, nem recebemos o salário complementar que é dividido em dois meses, que se cobra uma vez a cada dois meses do ano, as horas extras também não são cobertas, nem nenhum tipo de direito. As empresas não oferecem licença-maternidade, para os pais tampouco, não temos direito de absolutamente nada. Essa crise e essa precarização se agravaram no quadro da pandemia, nestes três meses pelos quais estamos passando pelo isolamento obrigatório, na Argentina fomos declarados “trabalhadores essenciais”, uma das vinte e quatro categorias que foram declaradas essenciais. Então, estamos expostos aos contágios de uma maneira muito forte, entende? Nesse sentido, as empresas não estão nos dando nenhuma espécie de material de higiene ou segurança, nos dão a conta-gotas, uma vez a cada quinze dias, uma máscara descartável que precisa ser descartada em 4h, no melhor dos casos e com alguma sorte um frasco de álcool em gel…

Há um mito entre os usuários e a população de que nós estamos trabalhando mais. Isto é um mito, de achar que um trabalhador pode fazer mais dias na pandemia, nem o tempo nem as distâncias mudaram a partir do COVID-19.  Se auto-explorando 10, 11 horas por dia, hoje com o COVID é exatamente o mesmo, e talvez até mais. E eu digo isso pelo seguinte, o que se passou na pandemia é: há um exército de trabalhadores desempregados, entre os quais milhares passaram a trabalhar como entregadores para poder enfrentar a crise econômica que estamos sofrendo, diante de alguns subsídios e paliativos que o Estado fornece, que são totalmente insuficientes para poder sustentar o que é uma cesta básica familiar. Então estamos enfrentando uma tarefa diante da qual nosso agrupamento de trabalhadores entregadores, nós organizamos a terceira assembleia nacional, decidimos acompanhar nossos companheiros do Brasil [na paralisação do dia 1º de julho], os companheiros com os quais tecemos relações internacionais, como os companheiros do Chile, os companheiros “repartidores unidos” [entregadores unidos] da Costa Rica, os companheiros “glovers unidos” do Equador, os companheiros “motociclistas unidos” do México e os companheiros de “ni un repartidor menos” [nem um entregador a menos], que é uma organização que nasce no México mas que tem presença em vários países.

Nesse sentido, colocamos toda nossa colaboração para acompanhar o 1º de julho com os companheiros do brasil e nós, aqui. Essa é a terceira paralisação internacional, é a primeira da qual o brasil participa, e celebramos a grande campanha de agitação e organização que está sendo feita em todo o país para enfrentar patronais comuns, tanto no México, como na Argentina, no Chile, em alguns casos empresas que têm presença em um só país.

O que temos a destacar sobre o movimento dos entregadores é que estão acontecendo lutas muito fortes; por exemplo, em 18 de junho, na semana passada, tivemos uma videoconferência com companheiros de diferentes países, em Milão, na Itália, estava se produzindo uma mobilização multitudinária de companheiros entregadores. A última paralisação internacional que aconteceu, em 29 de março, nessa mesma semana, entre 23 e 26 de março, três dias antes da segunda paralisação internacional, os companheiros entregadores de Hong-Kong estavam chamando uma greve de três dias. E se nós observamos os programas que os companheiros levantam, os programas reivindicatórios que eles levantam em todos os países do mundo, é uma coisa impressionante. Daí que nós vimos a necessidade de unificar as lutas.

Creio que é um acerto tecer essas relações com os companheiros da mesma categoria a nível internacional, e creio que se produziu um feito histórico, pois creio que em dezenas e dezenas de anos não houve uma greve internacional, na história do movimento dos trabalhadores há não sei quantos anos. E da parte de um setor que está hiperprecarizado e que é o que vocês aí chamam de “uberização do trabalho”, é a expressão de todos os tipos de flexibilização trabalhista que são impostos e aprovados por todos os tipos de governo que estão nos diferentes lugares onde estão presentes esses aplicativos, que deixam passar reformas trabalhistas e que tentam, assim, flexibilizar não somente os entregadores, mas eles são um exemplo a ser aplicado a diferentes categorias, e se há algo que é preciso ter claro é que o FMI está exigindo, em todos os países, ataques às convenções coletivas de trabalho.

É um modelo a ser seguido por parte de setores da burguesia, então creio que a luta, não somente, não defensiva dos entregadores, porque nós não temos nenhuma espécie de direito, antes pelo contrário, temos que conquistar tudo e que um grande contingente de trabalhadores precarizados entenderam como encarar corretamente uma luta, superando todos os problemas que temos hoje no marco da pandemia. Isso é algo muito digno de nota, porque, no marco do isolamento social obrigatório, na quarentena que está sendo feita, estamos nos valendo de todos os meios para superar e, nesses marcos, estamos fazendo uma luta correta contra patronais comuns em todo o mundo.

Aqui na Argentina, há alguns projetos de lei que foram escritos em nome dos trabalhadores e que não representam, no geral, nossos interesses. Do jeito que estão escritos, parece que foram ditados pelas patronais, praticamente. São um ataque e parece que a uma tentativa de reorganização que está acontecendo na base do movimento dos trabalhadores. Esse é um pouco do cenário que existe aqui na Argentina, nós, através da FIT, vamos apresentar um projeto de lei escrito pelos trabalhadores e em seu benefício, para contrapor aos vários projetos de lei que querem apenas legalizar a precarização trabalhista.

RELAÇÃO COM OUTRAS CATEGORIAS DURANTE A PANDEMIA

Nós participamos em 16 de junho da convocatória do plenário sindical combativo, onde diferentes expressões de luta do movimento dos trabalhadores fizeram atividades em todo o país, algumas organizações de entregadores estiveram presentes, é o que de maior há a nível de articulação da classe trabalhadora aqui. Estavam presentes lutadores de todo país, os mineiros de Andacollo, os profissionais da saúde, os médicos residentes que estão expostos, os trabalhadores do metrô também, estiveram presentes companheiros do sindicato pneumático, que são uma referência classista, combativa e um exemplo de sindicato democrático e os quais, junto com os trabalhadores azeiteros, que também entraram em uma luta muito forte na Argentina, são exemplos de sindicatos que conseguiram sustentar os salários em relação à inflação, e tudo isso porque são sindicatos democráticos que fazem assembleias por fábricas, assembleias gerais e partem para lutas firmes contra as patronais. No nosso caso, dos entregadores, é um movimento que está sendo gestado há pouco tempo, que teve seus antecedentes há alguns anos com o processo de ocupação de edifícios. Há um debate claro sobre o que é o ativismo dos entregadores, sobre tratar da formação de algum sindicato que nos represente, levando em conta que há dois sindicatos, sindicatos de aplicativos, que não representam ninguém, não estavam nas ruas, não colaboraram com as paralisações nacionais que estivemos realizando e são o que caracterizamos como uma burocracia sindical de fato e direito.

Temos que enfrentar não apenas as empresas, mas precisamos lutar contra as burocracias sindicais. Tiivemos também que enfrentar o aparato repressivo do estado e como aconteceu com os companheiros da província de Mendoza e da província de Córdoba, sofremos repressão por parte da polícia e do aparato repressivo do estado, quando estávamos levando reivindicações às ruas. É isso que acontece com a classe trabalhadora em todo o mundo, temos esses grandes inimigos que são as empresas, o Estado e a burocracia sindical, que são os três pilares da exploração que sofremos.

Uma outra coisa, em 1º de julho, na capital federal, se retrocedeu para a fase 1 [do isolamento devido ao COVID-19] na área metropolitana de Buenos aires, que é a localização mais populosa da Argentina. Se volta à fase 1 devido à taxa de contágio, então vai ser interrompida toda a circulação que não seja de trabalhadores essenciais, a restrição vai ser forte. Nós vamos nos unir a uma mobilização de professores, vamos nos concentrar nesse lugar icônico da Argentina que é o Obelisco, na avenida 9 de julho, na capital federal, vamos nos dirigir ao legislativo para rechaçar um projeto de lei que quer regulamentar os entregadores e aí vamos nos unir com diferentes setores da classe trabalhadora. Depois, vamos tratar de ver se as reivindicações que levamos ao Ministério do Trabalho poderão ser atendidas. Isso é uma coisa que vai ser muito difícil, porque supomos que o Ministério do Trabalho vai estar fechado devido ao encerramento das atividades, e depois vamos até à Plaza de Mayo para discutir como vamos seguir com essa luta que estamos encarando fortemente há pouco mais de dois meses.

A MOBILIZAÇÃO DOS TRABALHADORES ATOMIZADOS

Isso é muito notável, porque estamos nos desenvolvendo em meio a uma grande dispersão e atomização da categoria e, nesse sentido, estamos travando uma dura batalha contra a desorganização característica do nosso trabalho. Nós estamos superando com panfletos, para ir até as concentrações de trabalhadores, discutir com cada um, fazer pequenas assembleias, onde nos apresentamos com nossos materiais e fazemos uma discussão pessoal com cada trabalhador que alcançamos. Primeiro nos organizamos como um grupo de whatsapp, depois como uma organização de Mar del Plata, que é uma cidade que não é próxima da capital federal, convocando para as primeiras assembleias nacionais. Através do contato é que fomos tecendo uma rede de companheiros que sofrem dos mesmos problemas em diferentes províncias do país. Hoje temos, na assembleia nacional, companheiros que pertencem à província de Neuquén, que pertencem à província de Córdoba, de Santa Fé, de Mendoza e outras províncias e cidades do interior de cada província. Estamos superando todos os fatores desfavoráveis que temos e estamos fazendo assembleias em um processo de votação de delegados para que tenham representatividade. O mais interessante é que já conseguimos fazer três paralisações nacionais em diferentes cidades do país, terminando no Ministério do Trabalho, levando em conta que as empresas sempre fizeram ouvidos moucos às reivindicações que fazíamos e por isso estamos exigindo que o Ministério do Trabalho interceda entre nós e as patronais, sem tampouco ter muita confiança, porque entendemos que o ministério do trabalho representa o governo capitalista. Mas é a única maneira de acabar com essa confiança que alguns companheiros têm, inclusive em relação a algumas reivindicações que temos, para gerar uma discussão que possa ser orientada politicamente, até a denúncia política. Partir das reivindicações mais primárias e mostrar aos companheiros, através de sua experiência, que não são somente as reivindicações, mas que às vezes é necessário atuar politicamente contra os poderes que estão permitindo a precarização laboral da qual também são responsáveis.

RELAÇÃO COM O PERONISMO

Passou-se do macrismo, da direita, a nível nacional para a centro-esquerda, mas não tivemos nenhum tipo de resposta a nossas reivindicações. Nesse sentido, na quarta[3] vamos ao legislativo rechaçar um projeto do macrismo, da direita.

Vamos enfrentar um projeto de lei do macrismo, da direita. Na legislatura, na câmara de deputados da cidade, o kirchnerismo, os deputados que representam o governo nacional, falam e falam que isso não se pode permitir, que é um projeto anti-trabalhadores, mas a nível nacional eles controlam o Ministério do Trabalho e ignoram totalmente nossas reivindicações, sem nos dar qualquer tipo de resposta. Na hora de governar e aplicar a lei, tanto o peronismo quanto a direita atuam em benefício da patronal. É pura demagogia deles. Nenhum dos dois setores dá ouvidos às reivindicações que estamos fazendo e por isso a necessidade de mantermo-nos independentes dos governos. A classe trabalhadora tem que ser independente dos polos da burguesia.

PERONISMO E BUROCRACIA SINDICAL

Há um setor muito grande da burocracia sindical que está alinhado ao governo kirchnerista e que está permitindo, sem travar nenhuma luta, passarem ataques como os convênios, os processos de flexibilização que o FMI exige e que, inclusive, estão realizando paritárias pelas costas dos trabalhadores, sem colocar nenhuma espécie de resistência ou plano de luta, paritárias que estão muito abaixo dos índices de inflação. A burocracia sindical tem um poder de mobilização muito grande na Argentina, mas há um setor combativo e classista que desponta mais e se organiza mais porque obviamente, as dezenas de anos de tradição de luta da classe trabalhadora têm seus reflexos na formação de organizações classistas, na recuperação de alguns sindicatos que antes estavam nas mãos da burocracia. Isso reflete muito no agrupamento de que falei antes, que é a plenária sindical combativa.

SAUDAÇÃO AOS TRABALHADORES BRASILEIROS

Daqui, da parte da Associação dos Trabalhadores Entregadores da Argentina, saudamos a luta dos trabalhadores entregadores do Brasil e à grande greve internacional que acontecerá no primeiro junho, a necessidade de lutar como uma só força contra as patronais comuns está na ordem do dia. Viva a luta dos entregadores do Brasil! Viva a luta internacional dos entregadores! Viva a unidade de toda a classe trabalhadora!


[1] Defendemos as escalas móveis de salário, o reajuste, no contrato de trabalho, mensal do salário de acordo com a inflação dos produtos básicos de consumo; as escalas móveis de horas de trabalho, a divisão das horas de trabalho necessárias igualmente entre os empregados sem redução do salário; e as frentes públicas de trabalho, como forma de empregar os trabalhadores desempregados.

[2] Paritárias são comissões integradas por representantes dos trabalhadores e dos empresários para discutir e aprovar questões referentes aos contratos de trabalho, jornadas, salários etc.

[3] 1o de julho, dia da paralisação internacional.