Transição Socialista

Lições da greve dos caminhoneiros (à luz de 2013)

A greve dos caminhoneiros revelou que muitos problemas pelos quais este país passa há vários anos (particularmente desde junho de 2013) estão ainda longe de se resolver. Falamos sobretudo da desorientação da nossa esquerda.

Apesar de ser um fenômeno diferente do de junho de 2013 (e com composição social diferente), a greve dos caminhoneiros tem com ele interessantes paralelos. O primeiro é que se iniciou como uma luta contra o aumento no preço de uma mercadoria relativamente controlada pelo governo. Lá eram os 20 centavos, aqui os 46 centavos. Também foram movimentos externos às fábricas e canteiros (locais de trabalho das grandes categorias operárias). Também tiveram destaque em sua direção setores “autônomos”, que, com uso de “ferramentas” de mídia social, ganharam amplitude. Tais “autônomos” são alheios às tradições e formas de luta das categorias organizadas da classe trabalhadora e, sobretudo (mais relevante), externos aos grandes sindicatos pelegos que paralisam os trabalhadores brasileiros.

Dado seu caráter objetivamente pequeno-burguês — lá, indivíduos tomados enquanto ocupantes de ruas; aqui, pequenos proprietários de caminhões, seu próprio meio de produção —, dada essa condição, são incapazes de conduzir a conjuntura a uma situação pré-revolucionária. Isso porque são assim objetivamente incapazes de realizar ocupações nos locais de trabalho, abrindo a dualidade de poder. Independentemente disso, trazem grande instabilidade para a ordem burguesa e chegam mesmo a paralisar o conjunto da indústria (no caso dos caminhoneiros autônomos).

Lá como aqui, quando ficou claro que o movimento seria vitorioso em sua pauta mínima (20 centavos e 46 centavos), uma parte difusa, sem direção, intentou um “não é só por…”. Não era só por 20 centavos e não é só por 46 centavos. Isso é verdade. Era lá um ódio à situação de exploração e miséria insustentáveis a que o país chegava sob o governo burguês de Dilma; é aqui um grito de revolta contra as insuportavelmente baixas condições de vida sob o governo burguês de Temer.

Mas tanto lá quanto aqui, o cinismo e a hipocrisia dos governantes chamaram a atenção. Haddad falou que teria que tirar os 20 centavos das áreas de saúde e educação. Agora Temer fala a mesma coisa quanto aos 46 centavos (e, diga-se de passagem, aqueles ditos de esquerda contrários à greve dos caminhoneiros, que falam que agora o “povo pagará a conta”, deveriam dizer o mesmo de 2013).

O fato comprova, como falamos há anos (muito antes de junho de 2013), que a luta por controle de preços de mercadorias é algo absolutamente irracional e fadado ao fracasso. Não é uma política proletária, mas pequeno-burguesa. O que se conquista em um dia perde-se no outro. A burguesia usa o amortecimento do movimento entre os dois dias para quebrá-lo e repassar o custo à população. À classe trabalhadora não faz sentido lutar para controlar todos os preços das mercadorias do mundo (diesel, gasolina, gás etc.), mas lutar para que a sua própria mercadoria, a força de trabalho, seu salário, seja reajustada frequentemente com a média dos demais itens básicos.

Temer (assim como Haddad) jamais agiria de outra forma. Jamais deixaria de repassar o ônus à população. Essa é a lógica da gerência do Estado burguês. E é entre outros motivos para isso — repassar o ônus à maioria — que foi inventado o Estado. Ainda que alguns economistas acreditem que o Estado cria dinheiro do nada, a realidade é que ele é parasitário e improdutivo. O cobertor é curto, dizem. E é mesmo.

Não adianta o nosso sábio pequeno-burguês vir aqui com a resposta de sempre: é necessário não pagar a dívida (externa ou interna) e garantir dinheiro em saúde e educação. O pequeno-burguês ignora que esse dinheiro que iria finalmente para serviços sociais (e não para a dívida) já é mais-valia extraída (roubada) da classe operária pela classe capitalista. A exploração capitalista que dá base, sustenta e alimenta o sistema já está aí realizada. E só uma pequena parte dela vai para o Estado.

Além do mais, e a despeito do rentismo, a própria capacidade de investimento capitalista do Estado (que é em escala grandiosa) paralisaria se não fosse capaz de se valer do poderoso instrumento do crédito. O Estado é ele próprio uma alavanca fundamental da economia, como ensinou Marx. Os nossos pequeno-burgueses vivem num mundo de utopia, onde defende-se a gestão humanitária do Estado burguês e, ao mesmo tempo, renuncia-se às alavancas keynesianas desse mesmo Estado para se realizar sua política humanitária.

Evidentemente, isso não levou a lugar algum nem nunca levará. Mas o mal é que, assim fazendo, não se apresenta uma saída independente para a classe trabalhadora. Bloqueia-se essa saída. À classe trabalhadora não interessa combater o cobertor curto dos cínicos governantes burgueses com o cobertor generoso da utopia pequeno-burguesa. À classe trabalhadora, repetimos, interessa controlar sua mercadoria força de trabalho (seu salário) e lutar para reajustá-la sempre e em todo o momento em que seja necessário, para dar conta do aumento dos preços. A luta da classe trabalhadora é no chão da fábrica, é imanente; a política dos pequeno-burgueses é transcendente, acredita no Estado burguês.

Uma luta operária, se for conduzida com base no princípio da luta de classes, e não de ilusão de gerência do Estado, ampliará as contradições com o capital e levará necessariamente à abertura do poder paralelo nos locais de trabalho e nos bairros. São os comitês de fábrica e os conselhos. Só eles poderão ocupar o lugar do Estado burguês amanhã (e aí, inclusive, realizar, na prática, como resultado da dualidade de poder, o não pagamento da dívida. Esta reivindicação não deve ser o início de um programa marxista, a ser defendida em televisões e campanhas eleitorais, mas sim o resultado da luta intransigente por empregos e salários).

Há duas estratégias colocadas claramente para os revolucionários hoje: ou ilusão pequeno-burguesa no Estado ou princípio da luta de classes no local do trabalho. Não há meio termo. A não-construção de uma alternativa política no Brasil, desde 2013, revela que esquerda ainda não assumiu propriamente o princípio da luta de classes.

O princípio da luta de classes significa que a classe trabalhadora só pode contar com e confiar em suas próprias forças. Ela deve se organizar e se preparar para o conflito agudo e inconciliável com as forças da ordem capitalista. Não cabe ter esperança na capacidade do Estado regular mercadorias, não cabe ter esperança na capacidade do Estado vetar demissões em empresas capitalistas, não cabe ter esperanças em “estatizações” sob o domínio do Estado burguês, não cabe ter esperança no caráter “nacional” de empresas estatais-capitalistas, não cabe combater um imperialismo abstrato em unidade com a burguesia brasileira, não cabe combater abstrações chamadas “atraso” ou “dependência” brasileiros deixando de lado o ser capital. É preciso combater o capitalismo no Brasil, a exploração nas fábricas brasileiras, os capitalistas internacionais ou brasileiros aqui instalados, a exploração nas fábricas ditas “estatais”, e tudo com base no princípio da luta de classes, que não permite conciliação.

A greve dos caminhoneiros comprova que, infelizmente, de 2013 para cá, a esquerda brasileira avançou muito pouco. Ou nada. A página da história parece girar em falso. Novamente estourou um movimento análogo, mas a classe operária não entrou em cena de forma organizada (a despeito da greve de feriadão da FUP, sem reivindicações por emprego e salário, apenas para derrubar Pedro Parente). A classe operária não entrou em cena porque ainda não conseguiu superar o enorme peso dos seus aparelhos burocráticos, sobretudo sindicais, altamente corrompidos pelo princípio de atrelamento ao Estado (oposto ao princípio da luta de classes).

Por tudo isso, a conjuntura ainda é irracional. A queda do PT do governo enfraqueceu a burocracia sindical — dado que o PT é o partido com maiores organismos de controle sindical —, mas as alternativas de esquerda para capitalizar na queda do PT são vacilantes, pois dependentes demais do princípio pequeno-burguês de gestão nacional-estatal. O princípio verdadeiro, da luta de classes, ainda não aflorou sob o princípio falso, da gestão estatal. A tendência de irracionalidade da conjuntura se mantém grave devido à crise profunda da direção do proletariado. A fraqueza programática da esquerda é ainda o mais determinante na repetição da história.

Por quanto tempo teremos o luxo de repetir a história recente? A ausência de dualidade de poder impossibilita objetivamente que a enorme crise de dominação da burguesia brasileira se torne situação pré-revolucionária. Isso faz com que os setores médios, esmagados pela miséria crescente, não vejam saída consequente para a resolução do problema do degenerado poder atual, e passem a ter esperança em forças salvadoras externas (exército). Esses setores não são ainda majoritários, mas podem crescer mais na ausência do proletariado. A irracionalidade da conjuntura, marcada pela ausência do operariado (e a abertura de seu poder), pode se tornar perigosa. A esquerda precisa mais rapidamente do que nunca abandonar não apenas o PT em palavras, mas sobretudo em programa, em princípio e em ação. Não se combate o PT com variações do programa do PT.