Transição Socialista

Dia 14: centrais deram facada nos trabalhadores

O 14 de junho, de paralisação contra a reforma da previdência, foi um teatro de “luta” da burocracia sindical, para segurar a classe trabalhadora e poder aprovar o acordão costurado entre oposição (sobretudo PT) e governo Bolsonaro.

O acordão foi costurado no dia 11 de junho, após pedido de governadores do PT, PCdoB, PSDB, MDB e PSC. Todos queriam a retirada do BPC (Benefício de Prestação Continuada), o fim da aposentadoria rural e o fim da proposta de capitalização. A posição dos governadores foi aceita pela líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann (PSL), que articulou com Rodrigo Maia (DEM), com o presidente da Comissão Especial da Reforma, Marcelo Ramos (PL-AM), e com relator do texto na Comissão Especial, Samuel Moreira (PSDB).

Os partidos supostamente de “esquerda” que dirigem as centrais (como PT, PCdoB e outros) querem a reforma nesse acordo do dia 11 porque:

1. Já queriam antes (é exatamente a mesma proposta que a Dilma apresentou em 2015/2016, com Joaquim Levy);

2. Se o governo Bolsonaro fizer, eles não terão de fazer caso voltem ao governo (a única ideia fixa que têm);

3. A reforma, sem o BPC e a aposentadoria rural, permite o aumento da exploração dos trabalhadores produtivos e o alívio aos mais marginalizados (o que favorece medidas como Bolsa Família e outras prendas do Estado, fundamentais para conquista de base política);

Eis por que as principais centrais sindicais boicotaram ao máximo que puderam qualquer ação no dia 14. Em São Paulo, principal cidade do país, a paralisação foi muito fraca; de relevante, somente o metrô teve ação de destaque (e, ainda assim, parcial, quebrada internamente); pesou muito a desistência da paralisação dos motoristas e cobradores de ônibus, que, embora com muita disposição de luta, foram dissuadidos por sua direção pelega na calada da noite.

No ABC paulista – principal pólo industrial do país – a paralisação dos metalúrgicos não foi apenas uma farsa, mas foi uma traição à classe operária. Nas fábricas do ABC onde houve ação, não se tratou de paralisação, mas sim de desconto do dia parado. E isso à despeito da enorme vontade de muitos trabalhadores em parar (em inúmeros locais, grandes fábricas inclusive, o sindicato nem mesmo esteve presente). 

Confirmou-se no ABC o que já falamos muitas vezes: a maioria das “paralisações” é falsa, pois implica em negociação das centrais por reposição das horas, ou antecipação de trabalho, ou, ainda, em desconto da folha de pagamento. De uma forma ou de outra, elas são um estorvo para o trabalhador, que prefere trabalhar e ter seu salário integral em vez de desconto ou de bagunças em seus horários ordinários de trabalho. Eis por que a burocracia sindical necessita de tanto tempo para “preparar” a suposta “greve geral”: porque ela precisa negociar com os patrões como não atrapalhar seus lucros. 

Na Grande São Paulo (ponto nodal da economia nacional), bem como no chamado “pólo caipira” – fábricas que se estendem em alguns eixos produtivos centrais do estado de São Paulo –, com algumas poucas exceções (sobretudo SJC), não houve paralisações, ou, se houve, foi de pouquíssimos minutos, para tirar belas belas fotos da burocracia. Tais atrasos, entretanto, são repostos facilmente pelo capital.

Sem parar a produção nacional realmente, o capital não sai afetado; a extração de mais-valia (roubo do trabalhador pelo capital) não para; as contradições de classe, por isso, não afloram. Assim, os humores e ânimos gerais do proletariado não mudam e sua vontade geral de luta não avança. Assim, as chances de se derrotar a reforma desaparecem. Na estrutura da produção capitalista, tudo seguiu na harmonia abençoada pela burocracia sindical.

Houve mais radicalização nos setores de trabalho onde localizam-se sindicatos mais à esquerda, mais combativos (como Conlutas e Intersindical vermelha). Mas, grosso modo, esses sindicatos organizam principalmente trabalhadores de setores improdutivos (para o capital), da máquina estatal, cujo impacto na realidade capitalista, em uma paralisação de apenas um dia, é bastante pequeno. 

Devido à impotência real – ou para acobertar traições – muito do que se fez, de norte a sul do país, foi paralisar estradas e importantes vias, com fogo e pequenas barricadas, em geral mantidas por poucos militantes e em pequeno espaço de tempo. Nada muito grave para a ordem geral capitalista. Visa-se assim impedir que trabalhadores cheguem em seus locais de trabalho, fazendo-os parar “na marra” (não se realiza, portanto, uma paralisação internamente planejada e consciente dessas categorias).

Já no período da tarde – aproveitando-se da farsa bem montada durante a manhã nas principais categorias operárias – a burocracia sindical deitou e rolou sobre um público cativo, transformando a atividade em palanque partidário. Ou seja: dado que a burocracia não parou nenhuma categoria produtiva de impacto na realidade, dado que não trouxe nenhum setor operário organizado, de base, para os atos, a burocracia pôde fazer seu discurso ideológico muito bem formatado àqueles que têm uma perspectiva política pequeno-burguesa, de “esquerda”. Em suma: a burocracia conseguiu o incrível feito de não dar força aos atos – tirando deles as categorias organizadas – e, ainda assim, garantir o afluxo da camada que mais lhe interessa, que em número razoável tornou a atividade uma espécie de palanque eleitoral ou plataforma para a campanha do “Lula Livre”. 

Em São Paulo, na Av. Paulista, por exemplo, surpreendentemente, a CUT levou um caminhão de som minúsculo – menor do que o da CSP-Conlutas –, deixando claro que não estava “dando força”. Apesar disso, em torno dele aglomerou-se uma multidão para para ouvir os discursos de vitória (com base no acordo do dia 11, citado acima), bem como para ouvir políticos oportunistas, como Fernando Haddad, Gleisi Hoffmann e Guilherme Boulos, sempre muito bem intercalados por gritos de “Lula Livre” da massa de ideologia política pequeno-burguesa.

Até onde averiguamos, ao menos em São Paulo e no Rio de Janeiro – as duas principais cidades do país –, foram vaiadas e ameaçadas pessoas que tomaram a palavra para (além de denunciar a reforma, obviamente) defender que as atividades não se tornassem palanque eleitoral do PT ou de soltura do Lula.

Como já esclarecemos muitas vezes, lutar contra as ações do governo burguês de plantão não deve significar palanque a oportunistas do PT, como Lula e sua gangue burguesa. E mesmo o recém interceptado crime de Moro não pode servir pra libertar Lula. Moro deve pagar por seu crime, e sua condenação de Lula na primeira instância agora deve ser anulada, mas a condenação do petista em segunda e terceira instâncias tem de ser reformada e mantida. Os petistas não entendem o seguinte: Moro tem de pagar por seu crime, mas Lula também. O crime de Moro não apaga o fato de que Lula se enlameou com a burguesia, em crimes sobre os quais há provas de sobra. 

O maior desastre político neste momento seria a queda dos pequeno-burgueses de direita – Bolsonaro e Moro – ocorrer ao mesmo tempo que o reerguimento do PT. Isso será a prova de que a esquerda vinculada aos interesses históricos do proletariado perdeu o bonde da história.

Nesse sentido, deve-se destacar que os grupos mais à esquerda ao PT não estavam fortes no ato. Pelo contrário, quanto mais próximos do PT, maiores eram os grupos. Isso é o resultado de um longo processo histórico, em que a esquerda não soube ou não quis se construir como alternativa ao PT. Ela não soube ou não quis se relacionar ao ódio popular legítimo ao PT, ela não teve coragem de chamar de forma clara a derrubada da Dilma (falar de forma clara “Fora Dilma”); ela capitulou ou flertou com a ridícula tese do “golpe”; e ela não teve coragem de exigir a prisão de Lula (mas agora pede a queda de Moro e que este pague por seus crimes!); ela capitulou e votou no Haddad morrendo de medo de um suposto fascismo ou proto-fascismo (que agora se comprova um semi-parlamentarismo, com um governo burguês muito fraco). Hoje, quando os pequeno-burgueses de direita do naipe Lava-Jato vão à falência por sua própria incompetência – como só poderia ocorrer e necessariamente ocorreria cedo ou tarde –, agora não há nada coerente para se por no lugar, nada que aponte para a frente. Assim, setores cada vez mais amplos começam a voltar ao PT e sua narrativa furada parece crescer em consistência. Nada comprova mais a falência histórica da “esquerda” de “oposição” ao PT do que isso.

Apesar de o dia 14 já deixar bastante claro que as grandes centrais já não querem mais fazer nada contra a reforma, as paralisações são mais necessárias do que nunca. A hora crucial de radicalizar é agora, senão a classe trabalhadora pagará por muito tempo o peso dessa traição. Novas ações são necessárias e elas só podem ser convocadas pelo movimento unificado das centrais. A crise de direção dos trabalhadores não pode ser resolvida abstratamente, mas só pelo movimento geral e real da classe trabalhadora. E só as grandes centrais têm força hoje para desatar o movimento geral, inclusive trazendo possibilidades, assim, para a abertura de contradições e a superação da burocracia sindical pela própria classe.

Mas se a unidade de ação é fundamental, a liberdade de crítica é condição fundamental para a superação das burocracias. Não há frente única sem liberdade de crítica. Assim, é preciso reconhecer que as centrais mais à esquerda praticamente nada fazem de crítica séria e pública às centrais, desde as paralisações nacionais nos anos anteriores. Praticamente nada se disse até hoje sobre os acordos para reposição de horas (e os que tentavam denunciar, mesmo entre a esquerda, tinham suas falas cortadas ou boicotadas); praticamente nada se disse sobre o lockout – quando é a burguesia que fecha suas fábricas e manda os trabalhadores para casa – acordado com sindicatos em 2017. Da mesma forma, as críticas da “esquerda” ao PT são sempre muito sutis e diplomáticas, de forma a nunca criar grandes conflitos. Nunca se teve coragem, desde o início – quando a situação era muito mais favorável, em 2016 – de se criar um bloco claramente anti-petista nos atos. Assim, o espaço para uma alternativa histórica ao PT somente diminuiu, e hoje os revolucionários tendem a ser engolidos pela onda petista.

O balanço geral do dia 14, infelizmente, é de enfraquecimento, impotência e mesmo derrota pontual de qualquer movimento que prometa o futuro político do país. Saiu traída boa parte da classe operária do principal polo industrial do país, que perdeu um dia de salário. Fortaleceram-se não só a burocracia sindical com seus acordos espúrios, mas aqueles que apenas propõem a política inversa e complementar à de Bolsonaro: o PT e sua máfia corrupta burguesa. Sem alternativa pelo futuro, o passado retorna como pesadelo sobre o cérebro dos vivos.